segunda-feira, 21 de julho de 2008

Goebbels, Amorim e o blame game

Conhecendo o ministro Celso Amorim, é difícil acreditar que ele teve algum lapso lingüístico quando comparou os países ricos aos nazistas, que, seguindo a recomendação de Goebbels, repetiam uma mentira até que todos acreditavam ser verdade.

A citação de Goebbels, numa negociação em que os EUA são representados por uma descendente de sobreviventes do Holocausto, arrebitou mais narizes que uma eventual flautulência de algum diplomata em apuros com um filé tartar mal digerido. Ficou chato, dizem. Mas o Peter Mendelson, negociador dos europeus, já baixou a bola, minimizou o troço. Seria mesmo ridículo dizer que a rodada Dogha iria fracassar por causa de uma declaração politicamente incorreta do chanceler brasileiro.

Pode ser uma escorregada do ministro, mas eu arriscaria outra tese. Acho que Amorim convocou os nazistas ao se ver acuado e ameaçado na posição de negociador representante dos países em desenvolvimento. Tentou se credenciar como intérprete dos radicais, chamou de volta a atenção para si (estava perdendo público e o apoio das bases), e continua reinando no palco de Doha.

Está assim a situação em Genebra, onde algumas dezenas de ministros tentam um acordo para garantir o êxito da Rodada Doha, a rodada de liberalização comercial iniciada no Catar, em 2001:

.europeus e americanos tem problemas de política interna e dizem não poder abrir mais os mercados para produtos agrícolas nem baixar subsídios que distorcem o comércio, sem receber algum presente dos países em desenvolvimento (abertura de mercados para produtos industriais);

.os países em desenvolvimento afirmam que, com os altos preços agrícolas internacionais, os subsídios nem estão sendo tão usados, e os cortes previstos na OMC serão bem menores do que se imagina;

.além disso, não vêem por que reduzir as próprias barreiras tarifárias contra manufaturas importadas, numa hora em que tentam reativar seus setores industriais e lutam contra moedas valorizadas que ameaçam sua competitividade.

Ao lado dessa briga principal, pipocam mil atritos que, em caso de atolamento das discussões, podem fazer fracassar a reunião de ministros _ assim como a reunião ministerial de Cancún implodiu por causa dos Temas de Cingapura, coisa estranha que ninguém esperava.

Houve avanços técnicos, nos textos para um futuro acordo, mas as diferenças ainda são grandes. E a Índia deixou de ser o único país em desenvolvimento que manifestava abertamente o desconforto com as concessões que vinha fazendo o Brasil (os brasileiros avaliaram com o setor privado e concluíram que daria para reduzir mais as barreiras contra importações de manufaturas, em troca dos ganhos em agricultura e outros itens na negociação). Outros países começaram a ocupar a cena.

Do lado dos ricos, a França começou a deixar bem claro que não faria concessão nenhuma, enquanto os EYA mostram-se incapazes até de aprovar um acordo comercial com a Colômbia, único aliado incondicional na América do Sul. O clima, em genebra, é de blame game, jogo de culpas, a turma já apontando o dedo pros outros e acusando-os de responsável por um iminente fracasso na rodada Doha.

Amorim, que vinha desempenhando o papel de radical conversável, moderado entre os emergentes, começou, nesse cenário difícil, a ver países sul-americanos ameaçando tomar o palco. Argentina e Venezuela começaram a aparecer no noticiário anunciando a intenção de melar tudo, se a coisa não andar como gostariam.

Até agora, as principais decisões sobre os rumos da rodada Doha têm sido tomadas principalmente por um grupo de quatro interlocutores: EUA, União Européia, Brasil e Índia, teoricamente capazes de fazer um balanço das forças em disputa Se uns países emergentes radicalizarem, de um lado, alinhando-se com a Índia, e outros (México, Colômbia, Costa Rica e assemlehados) se alinharem aos ricos, o Brasil perderia relevância, como o cara boa-praça que se dá com todos mas não ameaça ninguém, no fim aceita o que decidirem.

Foi aí que o Amorim botou o Goebbels para fora.

Posso estar sendo benevolente com o chanceler. Mas que ele firmou um ponto, firmou, e garantiu as manchetes das agências de notícias, com essa coisa de botar nazista para fazer uma ponta nessa novela da OMC.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sergio,
boa análise, mas parte, creio de premissa incorreta. Acho que, neste caso, vc superestimou o chanteclairamorim. Até concordo que ele quis engrossar o tom de voz, em parte pelas razões que vc aponta. Mas que o Goebbels foi uma derrapada, isso aposto que foi.

Sergio Leo disse...

Repare, Ueta, que ele pediu desculpas pelo Goebbells, mas fez questão de repetir a acusação. E ganhou um destaque no noticiário que o velho discurso contra a hipocrisia dos ricos não teria. Concordo contigo que possivelmente ele não pensou em todas as implicações de evocar os nazistas, mas que ele chegou em genebra disposto a subir o tom, isso estava claro já na entrevista que deu no Rio, num seminário sobre imigração, em que já falava em tom agressivo do que o esperava na OMC.
Sem querer superestimar o chanceler, como v. bem alerta, o Amorim é, dos negociadores, o que tem maior experiência, já estava nisso na rodada Uruguai. Não age por impulso, mas de caso pensado.

Anônimo disse...

Brilhante! Também acho que o amorim fez de caso pensado...não soltou a frase a toa. A situação é ruim mas é pior para os outros. Se a gente analisar bem, nesses sete anos, o brasil avançou muito e está em melhores condições de aceitar acordos do que antes. Mas isso não quer dizer que a gente deva aceitar qq coisa, muito pelo contrário (só para usar uma expressão que o povo de redação não gosta kkkk).
Ele pediu desculpas pela referência ao nazismo, mas não pediu desculpas pela reclamação pq ela é verdadeira. os ricos agora deram para culpar os países pobres por todas as desgraças. É preciso lembrar a eles que o cenário mundial atual foi construído pelos ricos.